Estado & Liberdade
– às vezes são incompatíveis!
Tenho diante
de meus olhos a famosa Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789,
promulgada pela França, que em ato, dizia que “a ignorância, o esquecimento e o
desprezo aos direitos do homem, são as únicas causas das desgraças públicas e
da corrupção dos Governos”. Naquela época, a Assembleia francesa proclamava
essas palavras que ultrapassaram os séculos: “na presença e sob os auspícios do
Ser Supremo”, e hoje, 224 anos depois, a França manifesta a Carta de Laicidade,
que são 15 “mandamentos” que devem ser o lastro da educação em suas escolas
públicas, retirando delas a “presença” do Ser Supremo.
Em matéria da
Carta Capital, n.767, de 25 de setembro deste ano[1],
quem a escreveu declara que na contramão de países “contaminados, em sua vida
política e social, por uma visível atmosfera carola, quase teocrática”, a
França mais uma vez surpreende gerando essa Carta de Laicidade, que segundo o
mesmo escritor, “faz jus à tradição de liberdade e igualdade”. A tentativa
francesa é de mais uma vez, separar claramente o Estado da religião,
proclamando sua laicidade. Isso é louvável em certos aspectos, desde que no afã
de se fazer isso, não violente a própria liberdade defendida.
Claro que a
Carta de Laicidade difere da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
porque uma é nacional, promulgada como base fundamental de um Estado
independente e a outra se destina a fins mais restritos do ambiente escolar
público, todavia é preciso pensar um pouco mais sobre o assunto, porque com a
boa intenção de construir um caminho de igualdade entre os homens, iniciando
infância e na escola, pode-se estar cerceando na escola e na infância
(ambientes naturais da formação do próprio homem), seus direitos mais básicos
de expressão de sua identidade que claramente não é formada na escola. Pensemos
em alguns pontos.
Primeiro – a
Carta diz que a França é uma república democrática e social que respeita todas
as crenças – se isso fosse verdadeiro, de início não seria necessário que essa
Carta fosse promulgada, pois ela vai diretamente contra e exatamente na direção
das crenças religiosas e, portanto, nega a Democracia (como fim último ela
deveria prover as condições para o pleno e livre desenvolvimento das
capacidades humanas essenciais de todos os membros da sociedade[2]) e
nega o fato social, pois vê o Estado somente como uma máquina que representa uma
nação de direito, mas esquece-se que o Estado é composto por todos os cidadãos
que nele estão e participam, pois “todo o poder emana do povo”[3].
Segundo – é
correto que a Carta faça menção da separação entre Estado e religião, pois o
Estado não advoga religião pessoal, ao menos em tese não deveria, mas isso não
significa que as pessoas que dão existência ao Estado (sem pessoas não há
Estado) não possuam crença religiosa. É incoerente que um Estado que não tenha
crença religiosa, diga a seu povo (que lhe dá origem e legitimidade) que esse
Estado (gerido por pessoas, porque as leis não têm vida própria, precisam de
intérpretes e executores), dite as regras da própria manifestação pessoal das
crenças. Isso não é liberdade, nem tampouco igualdade, é uma tremenda imposição
à moda de governos monárquicos medievais e tirânicos.
Terceiro – a
Carta menciona que qualquer um é livre para crer ou não crer. Isso é
maravilhoso, pois a liberdade de consciência, o respeito a todas as crenças e a
liberdade de expressão dos alunos está garantida, em tese, pois o mesmo texto
veta aos alunos “livres” a “invocação de uma convicção religiosa para contestar
uma questão do programa”, “não quebrar as regras da escola invocando filiação
religiosa”, proibindo “portar signos ou objetos com os quais os alunos
manifestem ostensivamente suas filiações religiosas” e obrigando os professores
a transmitir aos alunos o “sentido e os valores do laicismo”, sendo
“estritamente neutros”. Alguém realmente considera que isso é liberdade,
igualdade e Democracia?
Quarto – um
Estado que pensa que, pelo fato de ser parcialmente responsável pela educação
de seu povo e não percebe que a educação se estende para além das escolas
públicas, está equivocado em seus conceitos. A educação não se dá somente nas
escolas públicas, mas também nas privadas, nas escolas confessionais, na casa,
na família, na tradição religiosa na qual o aluno nasceu, na instituição
religiosa ou culto do qual participa, nas redes sociais, na televisão, no
ambiente de trabalho, portanto, fora do ambiente formal da escola numa porcentagem
maior do que neste. Educação é também definida como “uma busca permanente de si
mesmo” e que o homem “é o sujeito de sua própria educação. Não pode ser o
objeto dela. Por isso ninguém o educa”, mas ela é feita na “comunhão com outras
consciências”, como Paulo Freire afirma[4].
Por isso a Carta também nega a essência da Educação.
Quinto – em
último lugar, é óbvio que não sou francês, não moro no país e não vivo a
extensão da problemática ateísta, secular e religiosa que caracteriza essa
nação e, portanto, não poderia opinar sobre os temas com 100% de precisão, mas
como observador externo e também vivendo num país como o nosso, envolto com
problemas parecidos, embora diferentes na expressão cotidiana, posso tecer
comentários. Uma Democracia que não respeita a pluralidade de seus cidadãos,
mas impõe regras a essa pluralidade com a desculpa de ordem social, mais parece
com outra coisa, e não uma Democracia. Um Estado que recebeu do povo o seu
poder e legitimidade, porém atenta contra os direitos básicos de seus cidadãos
legítimos, não é um Estado pleno, mas uma sombra de Estado. Um governo que
pensa que a educação de seus cidadãos passa por ele, sem a intervenção da
consciência de outros, da família, da vida em sociedade e de todos os demais
ambientes que formam o indivíduo, é autoritário em desmedida.
Portanto, a
Carta de Laicidade não me parece um avanço na tradição de liberdade e igualdade
francesa, mas um retrocesso, dada a dimensão da pluralidade das crenças
religiosas, da quantidade dos ambientes formadores da educação do homem e da
extensão da vida social que cada nação possui em si mesma.
© Carlos Carvalho